O tradutor português, convidado da 15ª Flip, traduziu a Bíblia sem qualquer compromisso teológico
RUAN DE SOUSA GABRIEL| PARATY (RJ)
29/07/2017 - 15h09 - Atualizado 31/07/2017 10h51
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O tradutor Frederico Lourenço: a Bíblia é um repositório de tesouros (Foto: Walter Craveiro)
Ao longo da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a Igreja Matriz, onde ocorrem os debates, foi palco de manifestações e conversas que causariam indignação às beatas mais furiosas. Houve, porém, um momento próximo ao sagrado, em que a igreja do século XIX recuperou sua atmosfera solene. Na noite da quinta-feira (27), durante a mesa Odi et amo, o português Frederico Lourenço recitou os primeiros versículos da Parábola do Filho Pródigo – em grego, a língua original em que foram escritos. Lourenço é um afamado tradutor da Ilíada e da Odisseia e professor de estudos clássicos na Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele está afastado da religião há quase 20 anos, mas anda sempre apegado à Bíblia. Lourenço se propôs a traduzir toda a Bíblia a partir dos textos originais em grego e da Septuaginta, tradução grega da Bíblia hebraica feita por sábios judeus no século III a.C. para atender a comunidade judaica dispersa pela bacia do Mediterrâneo.
A tradução de Lourenço busca ser fiel ao texto original, encontrar em português o equivalente exato para cada vocábulo grego, sem se importar com as implicações teológicas de suas escolhas. A primeira parte desse trabalho foi publicada por aqui em abril: Bíblia – o Novo Testamento (Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 69,90) reúne as traduções dos quatro Evangelhos. Embevecido pela natureza, pela arquitetura colonial e pelo clima de Paraty, Lourenço conversou com ÉPOCA sobre o que a Bíblia tem para dizer para crentes e ateus.
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ÉPOCA – Por que o senhor, um tradutor dos versos de Homero, se pôs a verter a Bíblia grega para o português?
Frederico Lourenço – Sempre me interessei pelo texto da Bíblia grega, sobretudo pelo Novo Testamento. Eu estava à procura de algo para fazer, algo que não fosse apenas uma tradução, mas também uma viagem interior. Minha primeira ideia foi traduzir um Evangelho, o de João, que é o que eu gosto mais. Depois, pensei que seria útil fazer um livro com os quatro Evangelhos, para fazer comparações entre eles. E, a partir daí, por que não traduzir o Novo Testamento todo? E por que não o Antigo Testamento também? Para minha surpresa, o Antigo Testamento grego ainda não havia sido traduzido para o português. Portanto, pensei que seria útil para as pessoas consultarem o Antigo Testamento grego, que é muito importante para a história do cristianismo, pois era o Antigo Testamento dos primeiros cristãos. E é um texto um bocadinho diferente do texto da Bíblia hebraica, tem mais livros. E há também diferenças interessantes em relação ao texto hebraico. Comparar o texto grego com o texto hebraico é uma coisa curiosa, as pessoas podem perceber as diferenças linguísticas, e não só teológicas entre eles.
ÉPOCA – Fala-se que a tradução grega da Bíblia hebraica estabeleceu uma determinada leitura da Bíblia, pois palavras que eram ambíguas em hebraico foram traduzidas por termos muito específicos em grego, limitando, assim, a interpretação . Como a tradução do hebraico para o grego impactou o texto bíblico?
Lourenço – Isso tem a ver com a forma como o hebraico era escrito no tempo em que a Septuaginta foi feita. Àquela altura, o hebraico ainda não se escrevia com notação precisa de todas as vogais – algumas palavras eram escritas só com consoantes, o que causava uma certa ambiguidade, uma palavra podia dizer mais de uma coisa. O papel do tradutor grego que olhava para a palavra hebraica e decidia o que ela significava em grego influenciou certamente a leitura cristã desses textos. O Antigo Testamento grego cristalizou uma leitura diferente da tradição hebraica. Quando, entre os séculos VII e VIII, fez-se o texto massorético [consolidação do texto da Bíblia hebraica], portanto com a identificação precisa de todas as vogais, algumas frases ficaram diferentes daquelas que nós encontramos no Antigo Testamento grego. São duas vias de leitura desse mesmo texto.
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ÉPOCA – O que é o método crítico-histórico, que guia sua tradução da Bíblia?
Lourenço – O método crítico-histórico tenta olhar para cada livro da Bíblia com individualidade sincrônica, ou seja, tenta perceber a época e o contexto em que o livro apareceu, equacionar as questões de autoria do livro e perceber que a Bíblia, tal qual nós a conhecemos, é uma coletânea de livros escritos por várias pessoas em épocas diferentes. Tenta entender cada livro acordo com seu contexto histórico e evita fazer o que a interpretação teológica faz, que é assumir uma unidade na Bíblia toda e interpretá-la de acordo com essa presunção teológica. Não nos damos conta, mas o presépio natalino – com o Menino Jesus, os Reis Magos e os pastores – é uma leitura teológica do nascimento de Jesus. Os Reis Magos aparecem no Evangelho de Mateus, mas não no de Lucas. O presépio é muito mais vivo em Lucas, pois lá há a presença dos pastores. É um exemplo de como, ao juntar vários textos da Bíblia, concluímos coisas que o método histórico-crítico prefere ver em suas individualidades. Mateus é uma coisa. Lucas é outra coisa. O método crítico-histórico valoriza as diferenças, porque valoriza, ao mesmo tempo, as verdadeiras semelhanças. Se nós partimos do princípio a Bíblia é um todo coerente, não estamos a valorizar os momentos em que há verdadeira coincidência nos textos. Não é um método contrário à interpretação teológica da Bíblia, mas é uma alternativa que permite uma leitura histórica e objetiva desses textos, que não os lê como iguais à interpretação teológica que se fez deles depois que foram escritos.
ÉPOCA – No Brasil, há muitas traduções dinâmicas da Bíblia que atualizam o vocabulário e tomam certas liberdades com o texto recorrendo ao argumento de que uma tradução bíblica deve ser fiel à mensagem, e não à literalidade das palavras. O que o senhor pensa dessas traduções dinâmicas da Bíblia?
Lourenço – Acho bom, desde que as pessoas possam ler também traduções mais literais, desde que haja a possibilidade de comparação. Quem faz tradução dinâmica da Bíblia tem um poder muito grande sobre o texto, um poder que os leitores não têm. O tradutor dinâmico sabe exatamente o que diz o texto original e sabe as alterações teológicas que fez. O leitor não. Ele tem de confiar no fato de os tradutores terem feito um bom trabalho. É preciso que haja muitas traduções da Bíblia, porque é um texto muito rico, inesgotável.
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ÉPOCA – A Bíblia mais popular no Brasil é a João Ferreira de Almeida, uma tradução feita por um pastor português no século XVII. Qual sua avaliação dessa Bíblia?
Lourenço – Ferreira de Almeida nasceu em Portugal, mas foi viver no Extremo Oriente. Se tivesse ficado em Portugal, teria sido certamente queimado pela Inquisição, porque era proibido traduzir a Bíblia. A história da tradução da Bíblia em Portugal só começou a melhorar no final do século XIX. Até hoje, em Portugal, não temos tantas traduções da Bíblia quanto há no Brasil. No Brasil, há dezenas; em Portugal, umas quatro, no máximo... A Bíblia de João Ferreira de Almeida é um trabalho extraordinário, é a primeira Bíblia completa da língua portuguesa. Embora ele tenha morrido antes de acabar, traduziu quase tudo [um pastor holandês completou a tradução de Ferreira de Almeida]! É extraordinário. A questão é que ele traduziu a Bíblia a partir das edições que havia no século XVII. E a primeira edição fidedigna da Bíblia foi publicada em 1707 – e Ferreira de Almeida morreu anos antes, em 1691. Ele usou uma edição do Novo Testamento que tinha muitos excertos que não existem nos manuscritos mais antigos.
ÉPOCA – Em sua tradução do Evangelho de João, o “Verbo” ainda é o “Verbo”. Algumas edições brasileiras recentes da Bíblia traduzem o famoso versículo “No princípio era o Verbo” por algo como “No princípio era a Palavra”. E “Palavra” também é uma tradução bastante recorrente em edições em língua inglesa ou alemã. Por que o senhor insistiu no “Verbo”?
Lourenço – Em minha tradução, há uma longa nota a explica essa escolha. Experimentei várias coisas: experimentei “Palavra”, experimentei não traduzir e pôr só “Logos” [como está em grego]. Acabei por pensar que, desde a tradução de Jerônimo [tradutor da Bíblia para o latim no século IV] é o “Verbo” – “Verbum”. E adotei o “Verbo” porque nenhuma das outras opções era boa. E, se nenhuma opção era boa, melhor não mudar uma coisa que as pessoas já estão habituadas a ler por uma tradução ruim. Há uma tradução portuguesa, de um padre louco [risos], que traduziu “Logos” por “Deus-Man”: “No princípio era Deus-Man”. Eu não fui tão longe assim. Não acho que “Logos” signifique “Deus-Man” [risos].
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ÉPOCA – Algumas coisas estão diferentes. Os “pobres de espíritos” que Jesus chama de “bem-aventurados” no Sermão do Monte agora são “mendigos pelo espírito”.
Lourenço – Tentei não me condicionar por aquilo que é habitual ao ouvido. A minha proposta é que as pessoas pensem um bocadinho sobre essa expressão. Ninguém pensa em “bem-aventurados os pobres de espírito”, ninguém pensa que não é isso que a língua original diz. O grego diz “mendigos pelo espírito”. Não há nenhuma maneira de as palavras gregas que estão ali dizerem “pobres de espírito”. Há muitas interpretações sobre o que é “pelo espírito”: devido ao espírito? por intermédio do espírito? por ação do espírito? para o espírito? Essa proposta de tradução chama a atenção para uma frase que toda gente acha que conhece, mas nunca pensa sobre. Outro exemplo é o “fazei isto em memória de mim”, a frase do Evangelho de Lucas que faz parte da liturgia da eucaristia. Eu traduzo: fazei isto para a minha memória, como está no grego. Terá um sentido muito diferente? Parece ter o mesmo sentido. Para que escrever “em memória de mim” se o grego diz “para a minha memória”?
ÉPOCA – O senhor crê em Deus?
Lourenço – Fui educado católico. Até os 35 anos, fui católico praticante. Depois, fui deixando de praticar, mas continuei a me identificar como católico. Hoje, não me identifico como nada, mas continuo irracionalmente acreditando num Deus que não posso provar que existe. Há qualquer coisa de irracional em mim. Tenho um grande fascínio por Jesus de Nazaré, mas não conseguiria ser sinceramente católico ou protestante. Quando se é religioso, é fundamental ser sincero. E eu não consigo.
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ÉPOCA – Como as pessoas que não creem em absoluto podem aproveitar a leitura de uma Bíblia como a sua, que não tem verniz religioso?
Lourenço – A pessoa que não crê pode acessar o texto como textos históricos, como qualquer outro texto escrito em grego no século I. Os problemas de autoria são os mesmos dos clássicos gregos. Os quatro Evangelhos, mesmo para um ateu, são textos extraordinariamente ricos, que nos enchem interiormente e nos transformam, num sentido positivo. As pessoas do século XXI deviam conhecer e refletir melhor sobre a mensagem daqueles textos – que, às vezes, não é a mensagem que se ouve ou se vê posta em prática nas igrejas. O apóstolo Paulo é um dos escritores mais fascinantes que já li, embora eu discorde dele em várias coisas e não guie minha vida pelas palavras dele. No Novo Testamento, há coisas lindíssimas, é um repositório de tesouros. Os livros proféticos são extraordinários, como o de Jonas, que, apesar de pequenino, é um livro que retrata toda a existência humana. São textos muito interessantes, mesmo para um ateu.
ÉPOCA – E o que os religiosos, acostumados a ler Bíblia aprovadas pelas igrejas, podem ganhar ao ler uma Bíblia traduzida segundo o método crítico-histórico?
Lourenço – Uma pessoa religiosa pode ver o que resta daqueles textos uma vez que eles foram separados das interpretações teológicas. E resta muito! São textos fascinantes mesmo sem a teologia.
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