Pastores enfrentam fome durante quarentena na Índia


Igrejas são procuradas pelos membros mais pobres no período em que não podem trabalhar





Pleno.News - 30/04/2020 16h07 | atualizado em 30/04/2020 16h21
Cristãos indianos são assistidos em época de quarentena contra a Covid-19 Foto: Portas Abertas

Boa parte do mundo está parado por causa da pandemia da Covid-19, e uma das medidas mais implantadas para conter o alastramento do novo coronavírus é a quarentena. Na Índia, a população está proibida de andar pelas ruas e trabalhar, para que bilhões de pessoas não fiquem doentes ao mesmo tempo e morram sem ter assistência médica adequada.

Essas decisões têm afetado aqueles que precisam trabalhar diariamente para ter o que comer. A organização Portas Abertas recebeu pedidos de socorro de vários pastores cristãos indianos, que não podem abrir igrejas nem continuar com os discipulados.

Dhiraj* é um dos líderes que está à frente de uma igreja em uma favela de uma grande cidade indiana. Ele não recebe mais as ofertas, nos valores entre 2,50 dólares (R$ 13,62) e 0,50 dólares (R$ 2, 72), para cobrir as despesas semanais.

– Estamos presos e não há mais ofertas. Não posso ir a lugar nenhum e não encontro outro trabalho. Estou pedindo ajuda para vocês – disse ele.

O parceiro da Portas Abertas, Rahul, confirmou que há muitas congregações pobres no país.

– A maioria dos membros da igreja são assalariados diários e nenhum trabalho para o dia significa comida para o dia. As famílias dos pastores estão sofrendo mais. Temos um plano para alcançar aqueles que estão realmente morrendo de fome – explicou.

Outra história ouvida foi a de Jai*, que estava bem até que foi impedido de visitar os membros e agora faz parte de um grupo de 30 pastores que está morrendo de fome por causa do bloqueio.

Tara* também clama por ajuda.

– Não temos o suficiente para alimentar nossos filhos. Não posso vê-los morrer de fome e não podemos ir para nossos pais. Por favor, faça algo para apoiar o corpo de Cristo – falou.

Segundo um cristão indiano, “as igrejas locais estão sendo procuradas por cristãos que já não sabem mais o que fazer para conseguir os alimentos diários”.

– Somos capazes de ajudá-los espiritualmente, enviando mensagens e a palavra de Deus através das mídias sociais, como WhatsApp e Facebook. Mas não somos capazes de satisfazer as necessidades físicas e psíquicas. Podemos pedir a sua organização que ajude a fornecer comida para as pessoas pobres da igreja? – declarou.

*Nomes alterados por segurança

COMO AJUDAR
O ministério Portas Abertas trabalha para que os cristãos indianos sejam socorridos em tempos difíceis por causa da perseguição de extremistas hindus, e também devido ao novo coronavírus, visto que a necessidade de apoio aumentou.

– Convidamos a igreja brasileira a orar e contribuir para a Campanha Global Índia – conclama a organização.

Para ajudar, clique aqui.


fonte: pleno news

Esperança! Mundo já tem 1 milhão de curados da Covid-19

Marca é quase um terço do total de casos da doença


Gabriela Doria - 30/04/2020 16h56 | atualizado em 30/04/2020 16h59
Recuperados da Covid-19 são quase um terço do total de infectados Foto: EFE/Marcial Guillén

A plataforma digital da Universidade Johns Hopkins, dos EUA, que acompanha os dados do coronavírus, mostrou que mais de um milhão de pessoas já se curaram do novo coronavírus. A marca positiva foi alcançada nesta quinta-feira (30).

No total, 1.oo6.112 (um milhão e seis mil cento e doze) pessoas se recuperaram da doença. Este total faz parte dos quase 3,25 milhões de pessoas infectadas no mundo.

O destaque fica para a Espanha, com o maior número de recuperados do mundo: 137.984. Em seguida aparece os Estados Unidos, com 124.979, e a Alemanha, com 123,5 mil. O Brasil aparece como 9º país onde há mais curados, com 34.132 sobreviventes.

fonte: pleno news

Frederico Lourenço: “As pessoas do século XXI deveriam refletir sobre a Bíblia”




O tradutor português, convidado da 15ª Flip, traduziu a Bíblia sem qualquer compromisso teológico
RUAN DE SOUSA GABRIEL| PARATY (RJ)
29/07/2017 - 15h09 - Atualizado 31/07/2017 10h51
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O tradutor Frederico Lourenço: a Bíblia é um repositório de tesouros (Foto: Walter Craveiro)

Ao longo da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), a Igreja Matriz, onde ocorrem os debates, foi palco de manifestações e conversas que causariam indignação às beatas mais furiosas. Houve, porém, um momento próximo ao sagrado, em que a igreja do século XIX recuperou sua atmosfera solene. Na noite da quinta-feira (27), durante a mesa Odi et amo, o português Frederico Lourenço recitou os primeiros versículos da Parábola do Filho Pródigo – em grego, a língua original em que foram escritos. Lourenço é um afamado tradutor da Ilíada e da Odisseia e professor de estudos clássicos na Universidade de Coimbra, em Portugal. Ele está afastado da religião há quase 20 anos, mas anda sempre apegado à Bíblia. Lourenço se propôs a traduzir toda a Bíblia a partir dos textos originais em grego e da Septuaginta, tradução grega da Bíblia hebraica feita por sábios judeus no século III a.C. para atender a comunidade judaica dispersa pela bacia do Mediterrâneo.

A tradução de Lourenço busca ser fiel ao texto original, encontrar em português o equivalente exato para cada vocábulo grego, sem se importar com as implicações teológicas de suas escolhas. A primeira parte desse trabalho foi publicada por aqui em abril: Bíblia – o Novo Testamento (Companhia das Letras, 424 páginas, R$ 69,90) reúne as traduções dos quatro Evangelhos. Embevecido pela natureza, pela arquitetura colonial e pelo clima de Paraty, Lourenço conversou com ÉPOCA sobre o que a Bíblia tem para dizer para crentes e ateus.


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ÉPOCA – Por que o senhor, um tradutor dos versos de Homero, se pôs a verter a Bíblia grega para o português?
Frederico Lourenço – Sempre me interessei pelo texto da Bíblia grega, sobretudo pelo Novo Testamento. Eu estava à procura de algo para fazer, algo que não fosse apenas uma tradução, mas também uma viagem interior. Minha primeira ideia foi traduzir um Evangelho, o de João, que é o que eu gosto mais. Depois, pensei que seria útil fazer um livro com os quatro Evangelhos, para fazer comparações entre eles. E, a partir daí, por que não traduzir o Novo Testamento todo? E por que não o Antigo Testamento também? Para minha surpresa, o Antigo Testamento grego ainda não havia sido traduzido para o português. Portanto, pensei que seria útil para as pessoas consultarem o Antigo Testamento grego, que é muito importante para a história do cristianismo, pois era o Antigo Testamento dos primeiros cristãos. E é um texto um bocadinho diferente do texto da Bíblia hebraica, tem mais livros. E há também diferenças interessantes em relação ao texto hebraico. Comparar o texto grego com o texto hebraico é uma coisa curiosa, as pessoas podem perceber as diferenças linguísticas, e não só teológicas entre eles.

ÉPOCA – Fala-se que a tradução grega da Bíblia hebraica estabeleceu uma determinada leitura da Bíblia, pois palavras que eram ambíguas em hebraico foram traduzidas por termos muito específicos em grego, limitando, assim, a interpretação . Como a tradução do hebraico para o grego impactou o texto bíblico?
Lourenço – Isso tem a ver com a forma como o hebraico era escrito no tempo em que a Septuaginta foi feita. Àquela altura, o hebraico ainda não se escrevia com notação precisa de todas as vogais – algumas palavras eram escritas só com consoantes, o que causava uma certa ambiguidade, uma palavra podia dizer mais de uma coisa. O papel do tradutor grego que olhava para a palavra hebraica e decidia o que ela significava em grego influenciou certamente a leitura cristã desses textos. O Antigo Testamento grego cristalizou uma leitura diferente da tradição hebraica. Quando, entre os séculos VII e VIII, fez-se o texto massorético [consolidação do texto da Bíblia hebraica], portanto com a identificação precisa de todas as vogais, algumas frases ficaram diferentes daquelas que nós encontramos no Antigo Testamento grego. São duas vias de leitura desse mesmo texto.

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ÉPOCA – O que é o método crítico-histórico, que guia sua tradução da Bíblia?
Lourenço – O método crítico-histórico tenta olhar para cada livro da Bíblia com individualidade sincrônica, ou seja, tenta perceber a época e o contexto em que o livro apareceu, equacionar as questões de autoria do livro e perceber que a Bíblia, tal qual nós a conhecemos, é uma coletânea de livros escritos por várias pessoas em épocas diferentes. Tenta entender cada livro acordo com seu contexto histórico e evita fazer o que a interpretação teológica faz, que é assumir uma unidade na Bíblia toda e interpretá-la de acordo com essa presunção teológica. Não nos damos conta, mas o presépio natalino – com o Menino Jesus, os Reis Magos e os pastores – é uma leitura teológica do nascimento de Jesus. Os Reis Magos aparecem no Evangelho de Mateus, mas não no de Lucas. O presépio é muito mais vivo em Lucas, pois lá há a presença dos pastores. É um exemplo de como, ao juntar vários textos da Bíblia, concluímos coisas que o método histórico-crítico prefere ver em suas individualidades. Mateus é uma coisa. Lucas é outra coisa. O método crítico-histórico valoriza as diferenças, porque valoriza, ao mesmo tempo, as verdadeiras semelhanças. Se nós partimos do princípio a Bíblia é um todo coerente, não estamos a valorizar os momentos em que há verdadeira coincidência nos textos. Não é um método contrário à interpretação teológica da Bíblia, mas é uma alternativa que permite uma leitura histórica e objetiva desses textos, que não os lê como iguais à interpretação teológica que se fez deles depois que foram escritos.

ÉPOCA – No Brasil, há muitas traduções dinâmicas da Bíblia que atualizam o vocabulário e tomam certas liberdades com o texto recorrendo ao argumento de que uma tradução bíblica deve ser fiel à mensagem, e não à literalidade das palavras. O que o senhor pensa dessas traduções dinâmicas da Bíblia?
Lourenço – Acho bom, desde que as pessoas possam ler também traduções mais literais, desde que haja a possibilidade de comparação. Quem faz tradução dinâmica da Bíblia tem um poder muito grande sobre o texto, um poder que os leitores não têm. O tradutor dinâmico sabe exatamente o que diz o texto original e sabe as alterações teológicas que fez. O leitor não. Ele tem de confiar no fato de os tradutores terem feito um bom trabalho. É preciso que haja muitas traduções da Bíblia, porque é um texto muito rico, inesgotável.

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ÉPOCA – A Bíblia mais popular no Brasil é a João Ferreira de Almeida, uma tradução feita por um pastor português no século XVII. Qual sua avaliação dessa Bíblia?
Lourenço – Ferreira de Almeida nasceu em Portugal, mas foi viver no Extremo Oriente. Se tivesse ficado em Portugal, teria sido certamente queimado pela Inquisição, porque era proibido traduzir a Bíblia. A história da tradução da Bíblia em Portugal só começou a melhorar no final do século XIX. Até hoje, em Portugal, não temos tantas traduções da Bíblia quanto há no Brasil. No Brasil, há dezenas; em Portugal, umas quatro, no máximo... A Bíblia de João Ferreira de Almeida é um trabalho extraordinário, é a primeira Bíblia completa da língua portuguesa. Embora ele tenha morrido antes de acabar, traduziu quase tudo [um pastor holandês completou a tradução de Ferreira de Almeida]! É extraordinário. A questão é que ele traduziu a Bíblia a partir das edições que havia no século XVII. E a primeira edição fidedigna da Bíblia foi publicada em 1707 – e Ferreira de Almeida morreu anos antes, em 1691. Ele usou uma edição do Novo Testamento que tinha muitos excertos que não existem nos manuscritos mais antigos.


ÉPOCA – Em sua tradução do Evangelho de João, o “Verbo” ainda é o “Verbo”. Algumas edições brasileiras recentes da Bíblia traduzem o famoso versículo “No princípio era o Verbo” por algo como “No princípio era a Palavra”. E “Palavra” também é uma tradução bastante recorrente em edições em língua inglesa ou alemã. Por que o senhor insistiu no “Verbo”?
Lourenço – Em minha tradução, há uma longa nota a explica essa escolha. Experimentei várias coisas: experimentei “Palavra”, experimentei não traduzir e pôr só “Logos” [como está em grego]. Acabei por pensar que, desde a tradução de Jerônimo [tradutor da Bíblia para o latim no século IV] é o “Verbo” – “Verbum”. E adotei o “Verbo” porque nenhuma das outras opções era boa. E, se nenhuma opção era boa, melhor não mudar uma coisa que as pessoas já estão habituadas a ler por uma tradução ruim. Há uma tradução portuguesa, de um padre louco [risos], que traduziu “Logos” por “Deus-Man”: “No princípio era Deus-Man”. Eu não fui tão longe assim. Não acho que “Logos” signifique “Deus-Man” [risos].

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ÉPOCA – Algumas coisas estão diferentes. Os “pobres de espíritos” que Jesus chama de “bem-aventurados” no Sermão do Monte agora são “mendigos pelo espírito”.
Lourenço – Tentei não me condicionar por aquilo que é habitual ao ouvido. A minha proposta é que as pessoas pensem um bocadinho sobre essa expressão. Ninguém pensa em “bem-aventurados os pobres de espírito”, ninguém pensa que não é isso que a língua original diz. O grego diz “mendigos pelo espírito”. Não há nenhuma maneira de as palavras gregas que estão ali dizerem “pobres de espírito”. Há muitas interpretações sobre o que é “pelo espírito”: devido ao espírito? por intermédio do espírito? por ação do espírito? para o espírito? Essa proposta de tradução chama a atenção para uma frase que toda gente acha que conhece, mas nunca pensa sobre. Outro exemplo é o “fazei isto em memória de mim”, a frase do Evangelho de Lucas que faz parte da liturgia da eucaristia. Eu traduzo: fazei isto para a minha memória, como está no grego. Terá um sentido muito diferente? Parece ter o mesmo sentido. Para que escrever “em memória de mim” se o grego diz “para a minha memória”?

ÉPOCA – O senhor crê em Deus?
Lourenço – Fui educado católico. Até os 35 anos, fui católico praticante. Depois, fui deixando de praticar, mas continuei a me identificar como católico. Hoje, não me identifico como nada, mas continuo irracionalmente acreditando num Deus que não posso provar que existe. Há qualquer coisa de irracional em mim. Tenho um grande fascínio por Jesus de Nazaré, mas não conseguiria ser sinceramente católico ou protestante. Quando se é religioso, é fundamental ser sincero. E eu não consigo.

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ÉPOCA – Como as pessoas que não creem em absoluto podem aproveitar a leitura de uma Bíblia como a sua, que não tem verniz religioso?
Lourenço – A pessoa que não crê pode acessar o texto como textos históricos, como qualquer outro texto escrito em grego no século I. Os problemas de autoria são os mesmos dos clássicos gregos. Os quatro Evangelhos, mesmo para um ateu, são textos extraordinariamente ricos, que nos enchem interiormente e nos transformam, num sentido positivo. As pessoas do século XXI deviam conhecer e refletir melhor sobre a mensagem daqueles textos – que, às vezes, não é a mensagem que se ouve ou se vê posta em prática nas igrejas. O apóstolo Paulo é um dos escritores mais fascinantes que já li, embora eu discorde dele em várias coisas e não guie minha vida pelas palavras dele. No Novo Testamento, há coisas lindíssimas, é um repositório de tesouros. Os livros proféticos são extraordinários, como o de Jonas, que, apesar de pequenino, é um livro que retrata toda a existência humana. São textos muito interessantes, mesmo para um ateu.

ÉPOCA – E o que os religiosos, acostumados a ler Bíblia aprovadas pelas igrejas, podem ganhar ao ler uma Bíblia traduzida segundo o método crítico-histórico?
Lourenço – Uma pessoa religiosa pode ver o que resta daqueles textos uma vez que eles foram separados das interpretações teológicas. E resta muito! São textos fascinantes mesmo sem a teologia.

A Bíblia de Frederico Lourenço, essa prodigiosa blasfémia


A ideia partiu de Frederico Lourenço: tornar a Bíblia matéria de estudo, sob uma perspectiva não-confessional, à semelhança do que as grandes universidades têm feito lá fora. Francisco José Viegas saltou sobre a proposta e bateu-se por ela, conseguindo fazer desta edição em vários volumes um inesperado best-seller










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Diogo Vaz Pinto
diogo.pinto@newsplex.pt





Nada chega a ser tão sacrílego como ir beber às fontes, ao seu incontido vigor original, subtraí-las aos trabalhos de ocultação, sucessivos ajustes e refinamento da fé, que opera muitas vezes como uma força de erosão selectiva. Fossem outros os tempos e é certo que Frederico Lourenço seria visto como um heresiarca, alguém a ser olhado com as maiores suspeitas. E a sua tradução da Bíblia, ao demarcar-se por uma «clara linha não confessional», atendendo-se à «materialidade linguística do texto», vertido do grego antigo, talvez fosse preservada por uns poucos como uma «prodigiosa blasfémia», circulando na clandestinidade, as suas páginas separadas, lidas em segredo, decorados aquelas passagens mais saborosas, onde o grão de sal mais custa para desfazer-se na língua, carregado de visões fantásticas e cruéis. Porque há sempre um punhado de homens que, independentemente da fé, gostam de se embrenhar em atmosferas turvas, e reforçam as suas convicções no gozo sábio com que os dogmas podem ser lidos a uma luz menos restrita.

Ainda que estes sejam já outros tempos, a tradução que a Quetzal tem vindo a editar mostrou-nos que este é ainda um terreno sensível, e muitos pruridos ficaram à vistas. Tratando-se de um empreendimento monumental, a iniciativa partiu do próprio tradutor, que estava a avançar pelo Novo Testamento, quando pediu ao seu agente – a Booktailors – que colocasse a proposta de uma nova tradução da Bíblia, a partir do grego, no mercado. Houve algumas editoras que se mostraram interessadas, uma delas a Quetzal. Francisco José Viegas, que dirige esta chancela do grupo Porto Editora desde 2008, contou ao Sol que ao fim da primeira conversa que teve com Frederico Lourenço se tornou claro que tinham a mesma ideia para a edição, esta que viu chegar agora às livrarias o quarto volume (Os Livros Sapienciais), e que se encerrará em 2021, altura em que sairá o sexto e último.

«Foi um encontro de almas», diz Viegas. «Não nos interessava publicar uma Bíblia strictu sensu, mas sim uma Bíblia comentada, linguisticamente trabalhada por um especialista como o Frederico», esclarece o editor. E adianta: «era isso que ele queria fazer, seguindo o modelo do que foi feito em Cambridge, Harvard, Oxford… Uma edição da Bíblia grega, a ‘Septuaginta’».

Tomando nas mãos qualquer dos volumes já publicados, não é difícil perceber como esta edição terá representado a realização de um sonho tanto para o tradutor como para o editor. Com o miolo impresso a duas cores, uma paginação generosa, que dá folga à vista, deixa o texto respirar, e não encavalita as notas, mas lhes confere um «espantoso protagonismo», como notou José Tolentino Mendonça. São objectos que equilibram idealmente o sóbrio e o sumptuoso, com capa dura, o tradicional papel bíblia dispensado a favor de um com 100 gramas (de resto, um dos melhores no mercado, o que conferirá a estes livros uma maior durabilidade). Por outro lado, e dadas as elevadas tiragens, que variam entre 10 a 15 mil exemplares, o preço de capa de cada um dos volumes é bastante acessível se comparado com os preços hoje praticados pela maioria dos grandes editores.

Na entrevista que ocupa as páginas seguintes, Francisco José Viegas alarga-se noutros aspectos da génese e recepção desta edição, e vinca que publicar a Bíblia é o sonho de qualquer editor histórico, lembrando que, originalmente, a tipografia foi inventada para a imprimir. E a propósito da Bíblia de Gutenberg, um facto que não deixa, hoje, de causar-nos espanto é o ter-se calculado que cada cópia terá exigido as peles de 300 ovelhas. Mas decididamente mais relevante, como faz notar o editor, é saber que houve muitos casos neste país de pessoas que foram perseguidas e mortas por terem ousado ler a Bíblia. E Viegas recorda ainda que foi apenas nos anos 30 do século passado que o Vaticano finalmente assumiu que não via mal nenhum em que os fiéis pudessem ler as sagradas escrituras. Assim, e apesar das pontuais críticas ou reservas que mereceu esta edição, Frei Bento Domingues frisou: «A Bíblia pode ser lida de muitas maneiras. A pior de todas é não ser lida».

Frederico Lourenço tem defendido consistentemente a sua abordagem, lembrando que, «num mundo ideal todos nós leríamos o Antigo Testamento em hebraico e o Novo Testamento em grego – e assim resolvia-se da melhor forma a problemática levantada pela tradução da Bíblia». A propósito do 1.º volume, aquele que reúne os quatro evangelhos, Lourenço defendeu que «é preciso voltar a estudar e compreender o texto do Novo Testamento na sua língua original: o grego. O cristianismo do século XXI deve estar apto a aceitar que o rigor linguístico não é inimigo da teologia – muito menos da fé. Nem a Bíblia se torna menos santa por lermos nela o que realmente lá está escrito.»

Borges costumava citar a resposta de Bernard Shaw quando, certa vez, lhe perguntaram se acreditava que o Espírito Santo era realmente o autor da Bíblia, ao que ele terá respondido: «Não só a Bíblia, como todos os livros que vale a pena reler». Desta noção Borges aproveitava a ideia de que, para os crentes, o Espírito Santo é aquilo a que os antigos chamavam a Musa. E recorda a tradicional invocação com a qual Homero inicia a Ilíada: «Canta, ó Musa, a cólera de Aquiles»... Mas o argentino, a quem sempre surpreendeu mais o talento dos homens para fabricarem mitos, lembra que no grego a palavra Bíblia é plural, e designa esse heterogéneo conjunto dos sessenta e tal livros canónicos de Roma e Israel. Ou seja, a Bíblia é na realidade, uma biblioteca, lembra Borges. «Que ideia excepcional, a de reunir textos de diferentes autores e épocas distintas e atribuir-lhes um autor único, o Espírito!», desabafava num entrevista. «Não é maravilhoso? Que obras tão díspares como o Livro de Job, o Cântico dos Cânticos, o Eclesiastes, o Livro dos Reis, os Evangelhos e o Genesis: atribuí-los todos a um só autor invisível. Os judeus tiveram uma ideia estupenda. É como se alguém pretendesse juntar num só tomo, as obras de Emerson, Carlyle, Melville, Henry James, Chaucer e Shakespeare, e declarar que tudo aquilo provém de um mesmo autor». E Borges remata: «Foi uma ideia magnífica esta dos judeus: reduzir os seus livros, a sua biblioteca inteira, a um só livro chamado ‘Os Livros’, a Bíblia.

Agora que esta biblioteca chega ao leitor português numa tradução que, guindada por um extremo rigor filológico, privilegia a compreensão do texto grego, é-lhe possível reaver «o grande código» (William Blake), acompanhado de notas que dão relevo à materialidade histórico-linguística do texto. Deste modo, Frederico Lourenço dá prevalência ao carácter literal, e é nas arestas que o tradutor se recusou a limar, nas realidades inconvenientes e inconsistências, nas insuspeitadas profundezas onde o leitor já não quererá ser guiado senão pelos seus instintos que estes livros se mostram vivos. É nesses ecos mais esquivos ou zonas de sombra, e até naquilo que, por qualquer razão, perdeu o sentido, e deambula repetindo para si palavras desatadas, como um ser que perdeu as chaves do seu próprio labirinto, é no golpe desses rumores nascidos no interior de qualquer obra tão antiga quanto vasta, que se penetra uma beleza terrível. Ali chegam a sugerir-se hipóteses que soariam heréticas noutros séculos, desvios face aos dogmas, e é nessa deriva que reencontramos o vigor pulsante, a inquietação literária própria dos grandes textos, e que assinala a perenidade na respiração de uma obra capaz de um pacto entre o sagrado e o profano.

Como assinalou Tolentino Mendonça, o desconhecimento da Bíblia, não é «apenas uma carência do ponto de vista religioso, mas é uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. A Bíblia, que continua a ser religiosamente o vital repositório onde milhões de mulheres e homens buscam inspiração para a aventura da construção do sentido das suas próprias vidas, constitui uma espécie de chave indispensável à decifração do pensamento, imaginação e quotidiano, mesmo daqueles que nunca a leram, de tal modo ela está disseminada na cultura.»

De resto, em torno da Bíblia persistem uma longa série de equívocos, interpretações grosseiras que fizeram escola, tantas recontados, muitos pontos foram acrescentados aos seus episódios e parábolas. E como disse Chesterton, se muita gente assume que Eva comeu uma maçã, ou que Jonas foi engolido por uma baleia, a verdade é que na Bíblia não há referência a baleias nem a maçãs. «No primeiro caso apenas se refere um peixe, o que pode implicar toda uma variedade de monstros marinhos; e no segundo, fala-se na experiência essencial da fruição, ou degustação do fruto de uma árvore, o que é claramente mais genérico e mais místico (...) As coisas que hoje nos parecem mais ridículas foram as primeiras explicações racionais e não os primeiros contornos religiosos ou primitivos. Se essas imagens originais tivessem sido deixadas ao seu mistério natural ou sombria fruição ou tenebrosos monstros das profundezas, nao teria havido tanta discussão à sua volta (…) Portanto, é injusto virar o bico ao prego e tentar culpar a Bíblia por causa de todas essas lendas e anedotas e alusões jornalísticas, que são encontradas na Bíblia por pessoas que nunca a leram.»

Agustina Bessa-Luís terá escrito num dos seus romances – provalmente A Jóia de Família, segundo lembra João Bénard da Costa numa das suas crónicas (Introibo ad altare dei) –, que a Igreja Católica nunca saberá quantos crentes perdeu no momento em que decidiu deixar de cleebrar a missa em Latim. «Desde que, em 1970, Paulo VI aprovou a tradução, para as diferentes línguas do mundo, dos livros litúrgicos e, nomeadamente, do Ordinário da Missa, suprimindo o uso do latim, o que, para mim tinha o sentido dos mistérios, deixou de ter sentido», escreve Bénard da Costa, acrescentando: «Sentido em mistérios? A frase é aparentemente contraditória, mas tão contraditória como tudo o que se disser sobre mistérios. E a Missa é um mistério. E a liturgia é um mistério.»

Para aquele que tinha Frederico Lourenço como seu afilhado dileto, assistência na missa perceberia tanto em português como em abexim, limitando-se «a decorar um palavreado cujo sentido forçosamente lhe escapa». Se em latim o mesmo se passava, pelo menos, defende Bénard, «não havia a ilusão de compreensão e havia a certeza da tradição». Agora, graças à dedicação e empenho de Frederico Lourenço, os textos estão vertidos num português literário, talvez o sentido continue a escapar-nos mas, por uma vez, o caminho está desimpedido.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Como encontrar o Criador



Depois de uma vida vazia
De vazios barulhentos
Surgiu em mim um anseio
De conhecer o Criador

De quem eu tanto ouvia falar
No rádio e na televisão
Diziam: Vem na minha igreja, é certo que vai te abençoar
Então eu ouvi a pregação

E busquei em romarias
E também em cultos de libertação
Fiz novenas e campanhas
Mas não achei o autor da criação

Mas um dia em uma viela
Um velho se aproximou
Disse: Seu moço o que procura?
Respondi: Procuro o Criador

Lhe contei que procurava
Em tanta religião que visitava
Por mil templos procurei
Mas em nenhum o encontrava

Lhe perguntei o porque desse fracasso
E lhe disse: o que eu faço ?
Ele então assim falou:
Me escute hoje seu moço
Que é simples encontrá-lo
Atente para o que eu falo
Que não tem como errar
Se quer ver o Criador
Antes do fim dessa jornada
Olhe agora pra estrada e me diga o que vê...

Respondi: não vejo nada
Que não seja rotineiro
Já busquei o dia inteiro
E à noitesinha também

Então atente meu rapaz
Para o que vou lhe falar
Torne de novo a olhar
Mas agora diferente
Olha para toda a gente
No caminho a caminhar
E escute atentamente o que eu vou lhe falar

No sorriso da criança, no cantar do beija flor
Numa voz de esperança
Lá está o Criador
Pois é dele que vem tudo
Com beleza e amor

Mas não é só nas coisas belas
Pois que nas feias também
Não precisa choro nem vela
Basta só fazer o bem
Pois não há obra mais bela
Que estender a mão a alguém...

Tu já viste esse mendigo?
O pedinte viu também?
Aquela senhorinha que mal encherga
O morador de rua com seu cão
Nas pessoas que só sofrem
Também tem o poder da criação
Se queres ver o Criador
Lhes estenda sua mão

Então entendi nesse momento
A beleza deste ensino
Tá na flor e no esterco
Tudo é dele e é lindo
Naquilo que damos mais honra
E naquilo que pouco damos
O Criador está presente
Na saúde e na doença
Na alegria e na tristeza
No sorriso e no pranto
Tudo é dele e ele é tudo

Quando faço um agrado
Quando mato sua sede
Quando sacio sua fome
Quando esquento o seu frio
Não preciso procurar
Pois acabo de encontrar
O Criador e o Seu Filho